sábado, 24 de novembro de 2012

Passagem



Tinha chegado a um momento em que tudo o que tinha vivido e aprendido lhe indicava que era hora de uma  mudança... Mais uma vez! Quando achava que já tinha o controle de toda a situação, pronto, era uma coceira... Mas desta vez, estava diferente. Sua percepção sobre as relações estabelecidas em sociedade estavam todas, absolutamente todas, sendo questionadas. Todos os valores cristalizados estavam ruindo. Não sabia aonde aquilo iria dar. Mas era inexorável e assustador! Tudo era-lhe tão inconsistente. Tinha um desejo incontrolável pela transparência, mas ao mesmo tempo, gostaria de estar em outro lugar, em outra dimensão. Queria ser como o ar... Incorpórea. Queria visceralmente o sonho...E quanto mais claro ficava tal possibilidade, maior e profundo o desejo de mudança. Percebia a rapidez de seu raciocínio. Cada vez ficava mais claro que a vida era muito, mas muito mais desafiadora e que aqueles laços estavam se tornando nós. Propunha para si uma nova estrutura, analisava todos os lados de uma questão, não apenas separando-os em duas possibilidades, mas em múltiplas versões. E pensando assim, tudo era válido, inclusive a não existência. Decidiu que a partir dali, aprenderia a morrer. O que era isso? Se tudo se esvai, se tudo lhe escapa entre seus dedos, é porque nada é para se deter. A partir dali, somente o que lhe proporcionasse a liberdade de si mesma e das outras pessoas teria lugar... E a compaixão por todas as tentativas de se eternizar. 

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Déjà vu

Hoje amanheceu tão nublado, que parecia que o dia transcorreria entre brumas. Foi assim durante toda a manhã. - Um dia sorumbático e melancólico, pensei, enquanto levava minha filha para o trabalho. E no rádio do carro tocava uma música daquelas que nos empurram para dentro de nós... Engraçado, mas agora não me lembro mais qual... Ficou perdida na memória.O fato é que lá pras onze horas (estamos no horário de verão) fui ao quintal de casa para jogar umas cascas de fruta para as galinhas e qual não foi minha surpresa ao me deparar com um céu incrivelmente azul e um sol tão brilhante, mas de uma luz daquela descrita por Drummond no poema O Elefante - que não cega! Sentei-me a admirar aquele espetáculo de dia, sorvendo o ar fresco da manhã de primavera. Ao mirar as montanhas ainda verdes, tive a nítida impressão de que já tinha vivido aquilo... Num instante estava eu a brincar de boneca e casinha debaixo do pé de figo verdinho. Os figos estavam amadurecendo e lá vinha minha mãe com um tacho de cobre para colher alguns - os mais verdes,  para o doce de natal. O quarto de minhas bonecas ficava em cima do pé de figo. Embaixo era a sala de visitas, onde fumávamos elegantemente aqueles raminhos do pé que caiam pelo chão, e falávamos da vida, das crianças e de nossos maridos imaginários. Ao lado da sala ficava a cozinha onde preparava as comidinhas: um bolo de banana cortada em rodelas, com creme de banana amassada e bastante açúcar cristal, que triturávamos satisfeitas durante a tarde. Outra hora era um prato exótico de terra com salsinha do canteiro de mãe...Vizinho ao pé de figo, ficavam as duas goiabeiras: um de goiabas vermelhas e outro de goiabas brancas. A goiabeira branca era uma senhora muito branca e alta e elegante. Seu tronco era delgado e salpicado de manchas brancas e beges, o que proporcionava um magnífico contraste entre suas folhas verdes, vistas de baixo para cima e o céu azul mais ao fundo. Passava horas mirando aquele cenário. Parecia uma catedral em estilo rococó. Era muito difícil de subir nela, mas era um prêmio a vasta visão de lá. A goiabeira vermelha era menor e mais aconchegante e, por diversas vezes, tinha passarinhos como companheiros na disputa de seus frutas maduros. As goiabas, todas, eram docinhas por demais...No canto esquerdo do quintal, ficava a oficina de meu pai, que era eletricista  nas horas vagas. Ali era o futuro. Simplesmente era nossa Nave Espacial! Cheia de telas de TV, botões de todas as qualidades, janelas de madeira e vidro abertas estrategicamente para o planeta. As galinhas eram de Marte, Vênus, e o cachorro Duque, da Lua. E tinha o viveiro de passarinhos coloridos que enchiam a tarde com suas músicas. Eles eram seres especiais, que nos avisavam de perigos que estavam por vir... No meio do quintal e perto do tanque de lavar roupa, ficavam uns tambores enormes de óleo, vazios, que enchíamos de água e era nossa piscina. Do lado esquerdo da casa, existiam pés de rosa, cercadas com câmaras de ar de pneus cortados ao meio, cheios de água ( não existia dengue nas cidades). Ali eu buscava minha varinha de condão e, descalça, conversava horas infindáveis com minha amigas fadas. De nosso quintal avistávamos os outros quintais, onde todos brincavam e nos convidávamos para uma brincadeira qualquer... À noite, uma hora era fogueira, outra hora era pular corda, outra hora era hora de contar estórias de terror, outra hora era hora de show... 


Quantos anos se passaram? E assim, lembrei de outras histórias de infância, de meus irmãos mais velhos, de meus pais, de meus avós...De todas as pessoas do planeta... Meus olhos se encheram de lágrimas e então só agradeci a vida por ter me proporcionado tanto bem.