segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Li e gostei...E chorei...

"[...]Caro Sammy:
Aquela putinha esteve aqui a noite passada; você sabe, Sammy, a gringa nojenta com aquele corpo todo e a cabeça de uma débil mental. Ela me apresentou algumas coisas parecidas com textos supostamente escritos por você. A seguir ela afirmou que a foice da morte está muito perto do seu tuberculoso pescoço. Em circunstâncias normais, eu diria que é uma situação trágica. Mas tendo lido o lixo que seus originais contêm, deixe-me falar com toda franqueza que seu passamento será um benefício para toda a humanidade. 
Você não escreve bosta nenhuma, Sammy [...]
Aí estava, liquidado, devastador. Dobrei os originais, coloquei a nota com eles dentro de um envelope grande, selei, pus o endereço para Samuel Wiggins, posta restante, San Juan Califórina, selei, e enfiei no bolso. Desci e fui até a caixa do correio na esquina. Passava um pouco das três de uma madrugada sem igual. O azul e o branco das estrelas eram como cores do deserto, uma delicadeza  tão arrepiante que eu tive que parar e pensar que poderia ser tão agradável. Nenhuma folha das palmeiras sujas se mexia. Nem um som.
      Tudo que havia de bom em mim tremeu no meu coração naquele momento, tudo o que eu esperava no sentido profundo e obscuro da minha existência. Aí estava a infinita placidez muda da natureza, indiferente à grande cidade; aí estava o deserto debaixo dessas ruas, esperando a cidade morrer, para cobri-la com areias imemoriais de novo. Me sobreveio uma apavorante consciência do significado e do destino patético do homem. O deserto estava sempre ali, um paciente animal branco, esperando as pessoas morrerem, as civilizações passarem e sumirem na escuridão. Naquele momento, os homens me pareceram valentes, e eu fiquei orgulhoso de ser um deles. Todo o mal do mundo não parecia mal, mas inevitável e coisa boa e parte daquela luta sem fim para manter o deserto lá embaixo.
Olhei para o sul, na direção das grandes estrelas, e eu sabia que praqueles lados ficava o deserto de Santa Ana, que debaixo das estrelas numa cabana havia um homem como eu, que talvez seria engolido pelo deserto antes de mim, e em minhas mãos eu tinha um esforço seu, uma expressão da sua luta contra o silêncio implacável em direção ao qual ele estava sendo arrastado. Assassino ou garçom ou escritor, não importa : seu destino era o de todo mundo, seu fim, meu fim; e aqui de noite nesta cidade de janelas escuras havia outros milhões como ele e como eu: inseparáveis como folhas da relva que vão morrer. Viver é um troço duro. Morrer é o trabalho máximo. E Sammy ia morrer logo.
    Parei diante da caixa do correio, encostei a cabeça nela, e morri de pena de Sammy, e de mim, e de todos os vivos e de todos os mortos. Me perdoa Sammy! Perdoa um imbecil! Voltei para meu quarto e levei três horas escrevendo a melhor crítica sobre seu trabalho que eu podia fazer. Não disse que isto estava ruim ou que estava errado. Disse que isto, em minha opinião, seria melhor assim, e assim, e assim por diante. Fui dormir lá pelas seis, mas foi um sono feliz. Como eu era uma pessoa maravilhosa! Um homem gentil, de fala mansa, um grande homem, amando igualmente todas as coisas, homens e animais."

Esse é um trecho (p. 121 a 123) do livro "Pergunte ao Pó", de John Fante, escrito em 1939. Fante, escritor inspirador de Charles Bukowiski, da geração beatinik... Mais, recomendo a leitura de todo o livro. É implacável!

domingo, 2 de outubro de 2011

Miscelânea...E um pedido de ajuda.

      Há alguns dias, lendo o blogexperimental, deparei com uma poesia incrível, que se apresenta em latim: Post blanda veneris, cujo significado vai ficar assim mesmo, oculto para nós, leigos e mortais. A poesia é maravilhosa devido ao tema, às imagens e movimentos que desencadeia. Faz parte de uma coletânea chamada Carmina Burana...Lá fui pesquisar o que era aquilo. Pois bem: Carmina Burana é uma coletânea de poemas medievais, escritos entre os séculos XI, XII e XIII, encontrada num monastério na Baviera, Alemanha. Foram escritos por clérigos vagantes, que se formaram dentro da instituição católica, mas que não assumiram de fato a função de padres. Eram altamente letrados, intelectuais, e não deviam obrigações a nenhuma ordem da Igreja. E muito menos a nenhuma ordem feudal. Eram LIVRES, num mundo de vassalagens...Suas poesias formam uma crítica ao contexto medieval em vários aspectos. Foram chamados de goliardos, e promoveram uma mudança na forma de se escrever poesias que influenciaram um leque imenso de poetas ao longo dos séculos, chegando até a Geração Beat! Descoberta que me tirou o fôlego...Carmina Burana deu origem a uma ópera de mesmo nome, de um outro alemão, Carl Orff, escrita no século passado, que é arrebatadora...Acabei comprando o livro e baixando a ópera no Youtube pra compreender melhor tudo aquilo. Porém, o livro não traz todos os poemas do Carmina, apenas os escolhidos pelo Carl Orff para comporem sua obra. Agora estou pensando em como fazer para adquirir os tais poemas medievais em sua totalidade, se é que é possível. Se alguém puder me ajudar nessa empreitada, adoraria.
Vai um trechinho de uma dessas pérolas:   
Queimando interiormente

Queimando interiormente
numa ira violenta,
com extrema amargura
falei à minha mente:
criado da matéria, 
das cinzas dos elementos,
sou como a folha
soprada pelos ventos.
[...]
A esmo sou levado
como uma nave sem piloto,
e pelos ares voo
como um pássaro ao sabor dos ventos,
correntes não me prendem,
chaves não me trancam,
eu procuro os que semelham, 
e me uno aos desajustados.
[...]
Eu vou pelos largos caminhos,
como são os da juventude, 
eu me entrego aos vícios
e me esqueço das virtudes,
desejoso de volúpias,
muito mais que de salvação,
morto em minha alma,
à minha carne me devoto.

Descobre-se uma outra Idade Média, como já suspeitava, dinâmica e desejosa de mudanças. Muitos desses poetas, intelectuais, foram condenados a morte por tais ousadias...
 E como uma coisa leva a outra, voltei a ler Pergunte ao Pó, de John Fante, escritor que inspirou a geração beatnik. Publicado em 1939, conta a história de Arturo Bandini, um aspirante a escritor nos Estados Unidos, e começa assim:
Uma noite, eu estava sentado na cama do meu quarto de hotel em Bunker Hill, bem lá no centro de Los Angeles. Era uma noite importante na minha vida porque eu tinha que tomar uma decisão importante sobre o hotel. Ou eu pagava ou caía fora: era isso que a nota dizia, a nota que a proprietária tinha enfiado por baixo da minha porta. Um grande problema, que merecia muita atenção. Resolvi o problema apagando a luz e indo pra cama.  
É mais um daqueles que você não consegue largar...
Agora, estou pensando nas músicas que compõem meu estar aqui...