Aquela putinha esteve aqui a noite passada; você sabe, Sammy, a gringa nojenta com aquele corpo todo e a cabeça de uma débil mental. Ela me apresentou algumas coisas parecidas com textos supostamente escritos por você. A seguir ela afirmou que a foice da morte está muito perto do seu tuberculoso pescoço. Em circunstâncias normais, eu diria que é uma situação trágica. Mas tendo lido o lixo que seus originais contêm, deixe-me falar com toda franqueza que seu passamento será um benefício para toda a humanidade.
Você não escreve bosta nenhuma, Sammy [...]
Aí estava, liquidado, devastador. Dobrei os originais, coloquei a nota com eles dentro de um envelope grande, selei, pus o endereço para Samuel Wiggins, posta restante, San Juan Califórina, selei, e enfiei no bolso. Desci e fui até a caixa do correio na esquina. Passava um pouco das três de uma madrugada sem igual. O azul e o branco das estrelas eram como cores do deserto, uma delicadeza tão arrepiante que eu tive que parar e pensar que poderia ser tão agradável. Nenhuma folha das palmeiras sujas se mexia. Nem um som.
Tudo que havia de bom em mim tremeu no meu coração naquele momento, tudo o que eu esperava no sentido profundo e obscuro da minha existência. Aí estava a infinita placidez muda da natureza, indiferente à grande cidade; aí estava o deserto debaixo dessas ruas, esperando a cidade morrer, para cobri-la com areias imemoriais de novo. Me sobreveio uma apavorante consciência do significado e do destino patético do homem. O deserto estava sempre ali, um paciente animal branco, esperando as pessoas morrerem, as civilizações passarem e sumirem na escuridão. Naquele momento, os homens me pareceram valentes, e eu fiquei orgulhoso de ser um deles. Todo o mal do mundo não parecia mal, mas inevitável e coisa boa e parte daquela luta sem fim para manter o deserto lá embaixo.
Olhei para o sul, na direção das grandes estrelas, e eu sabia que praqueles lados ficava o deserto de Santa Ana, que debaixo das estrelas numa cabana havia um homem como eu, que talvez seria engolido pelo deserto antes de mim, e em minhas mãos eu tinha um esforço seu, uma expressão da sua luta contra o silêncio implacável em direção ao qual ele estava sendo arrastado. Assassino ou garçom ou escritor, não importa : seu destino era o de todo mundo, seu fim, meu fim; e aqui de noite nesta cidade de janelas escuras havia outros milhões como ele e como eu: inseparáveis como folhas da relva que vão morrer. Viver é um troço duro. Morrer é o trabalho máximo. E Sammy ia morrer logo.
Parei diante da caixa do correio, encostei a cabeça nela, e morri de pena de Sammy, e de mim, e de todos os vivos e de todos os mortos. Me perdoa Sammy! Perdoa um imbecil! Voltei para meu quarto e levei três horas escrevendo a melhor crítica sobre seu trabalho que eu podia fazer. Não disse que isto estava ruim ou que estava errado. Disse que isto, em minha opinião, seria melhor assim, e assim, e assim por diante. Fui dormir lá pelas seis, mas foi um sono feliz. Como eu era uma pessoa maravilhosa! Um homem gentil, de fala mansa, um grande homem, amando igualmente todas as coisas, homens e animais."
2 comentários:
Oi, Lilian.
Eu recebi outro dia uma recomendação muito boa sobre este livro e agora vejo você também indicando. Acho que vou mesmo comprá-lo, pois seu gosto literário parece se aproximar muito do meu. Vou ler e depois comento com você.
Obrigado pelo carinho e apoio por ocasião da perda do meu amado pai.
PS: na semana de 14 a 19 estarei aí na cidade e estou querendo falar com você sobre Itabira. Mande-me seu celular por e-mail para eu te ligar.
abração. Paz e bem.
Que máximo! Eu amo Bukowski, e se John Fante serviu de inspiração para ele, me interessa MUITO conhecer sua obra. Valeu pela dica!
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